desfotografia
a ideia
Em 2023 fui convidado por Fernando de Tacca para escrever um artigo sobre uma de suas séries fotográficas, Dípticos, trípticos e etc. Neste texto, a partir do embate com seu trabalho, desenvolvi a ideia sobre o que chamo de desfotografia. Entendo este vocábulo como uma prática e não um conceito. Daí pude compreender que a utilizo em meus cursos, aulas e acompanhamentos de artistas desde antes de nominá-la. Um novo convite surgiu, agora por parte de Altair Martins e Charles Monteiro, para publicar o manuscrito como um capítulo do livro que estavam organizando sobre imagem e literatura (e vice-versa). O livro foi lançado em 2024 sob o título Literatura e imagem: diálogos contemporâneos, pela editora da PUCRS. O excerto abaixo, de minha autoria, é retirado do texto Uma imagem somente é [ ] se ela transforma ou só resta fazer e segue aspeado a fim de explicar melhor a desfotografia.
“O primeiro passo para desaprender é notar “que os discursos da ciência e da técnica, embora assumidamente indispensáveis, são doravante tidos como banalidades, e que a aventura é buscada alhures” (Flusser, 2008. p.52). O que se entendia por fotografia não tem correspondência com a produção atual. A estrutura construída em torno dos discursos sobre a tecnologia fotográfica no século XIX não se sustenta mais. Segundo Flusser (2008), a celeuma entre o verdadeiro e o falso não tem mais sentido. A realidade é mista (Tisseron, 2009). No entanto, há um risco nesse elogio à superficialidade descrito por Flusser (2008), já sinalizado no seu ensaio anterior sobre uma filosofia da caixa preta: aceitar as regras dadas. É preciso desaprender a fotografar, subverter o programa. Sem uma postura crítica diante das tecno-imagens não será possível acessar a sombra e viver a morte. É um embate entre o input e output: “tudo o que o imaginador precisa fazer é imaginar as imagens e obrigar o aparelho a produzi-las” (ibidem, p.53). Obedecer ao aparelho implica mais do mesmo: mais da mesma fotografia.
[...] A fotografia, no século XIX, com seus discursos direcionados às expectativas do positivismo, da transparência do real, da representação e da verdade, tornou-se luminosa demais. Apesar disso, outras formas de lidar com a fotografia, extrapolando essas expectativas, existiram. Hoje compreendo essas produções como uma prática desfotográfica. Um modo de agir específico que subverte e, em alguns casos, critica as regras do sistema fotográfico. E, como toda ação, é também pensamento e forma: “não se pode pensar sem ao mesmo tempo agir e formar, nem agir sem ao mesmo tempo pensar e formar, nem formar sem ao mesmo tempo pensar e agir” (Pareyson, 1993. p.24).
A desfotografia carrega em si quatro formas de ação-pensamento: agir contrariamente, negar, separar e cessar. Agir contrariamente significa desfazer a fotografia, ou seja, compreender e produzir o mundo, as coisas, a vida como morte e suas substâncias enquanto experiências e não evidências. Sem atestado, a imagem não tem outro caminho para existir senão desvelar a si mesma, refutando a representação. Negar a fotografia é reordenar a lógica do funcionamento de sua tecnologia em favor do plural e do não programado. É subverter a inscrição programática da qual o equipamento é refém; é enxergar a sombra. Separar porque se distancia das premissas utilitárias e das correspondências visuais já dadas. Não almeja corresponder à uma função predeterminada, mas inventa sua própria legalidade. Separa-se também da obrigatoriedade para com a aparência do agradável e dos temas considerados notórios. Encontra no ordinário um motivo eminente e contesta a primazia da percepção ocular da cultura fotográfica. Assim, a desfotografia se propõe a cessar o absoluto e o determinado em direção ao possível e ao inominável. Cessa seu contrato com a luz como fonte da verdade e inaugura seu caminho pela sombra, abraçada à dúvida. A desfotografia é um convite ao desvio, à surpresa e à agramática visual; a um abandono dos olhos velhos já sem serventia.”
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Gatti, F. 2024. Uma imagem somente é [ ] se ela transforma ou só resta fazer. In: Martins, A.; Monteiro, C. (Orgs.) Literatura e imagem: diálogos contemporâneos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2024. pp. 155-177
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Para visualizar a série de Fernando de Tacca, acessar: https://www.flickr.com/photos/30110072@N04/albums/72157713955079032/with/51188913361
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Aqui esse vocábulo é entendido a partir da premissa pareysoniana da “forma como organismo, que goza de vida própria e tem sua própria legalidade intrínseca: totalidade irrepetível em sua singularidade, independente em sua autonomia, exemplar em seu valor, fechada e aberta ao mesmo tempo, finita e ao mesmo tempo encerrando um infinito, perfeita na harmonia e unidade de sua lei de coerência, inteira na adequação recíproca entre as partes e o todo” (Pareyson, 1993. pp.09-10).
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O link para compra o livro é: https://editora.pucrs.br/livro/1743/